Alcione sempre fez questão de ser uma cantora popular. Se um artista se propõe a construir no decorrer da carreira uma imagem, a imagem que Alcione colocou como meta para ela foi esta: “Eu quero ser uma cantora popular”. Acontece que ela bebeu no fino da música brasileira, Alcione bebeu no jazz. Além de toda a influência musical que teve do pai, que era maestro (ela começou aprendendo música enquanto ajudava o pai a copiar as partituras, e depois a tocar clarineta aos 8 anos), ela também aprendia ouvindo no rádio Elizeth Cardoso, Angela Maria, Nelson Gonçalves, Núbia Laffaiete. Também ouvia Louis Armstrong, e depois conheceu Ella Fitzgerald.
Alcione também era de família humilde, estudou em colégio público numa época em que a melhor educação estava lá, e por isso dividiu a classe com Roseana Sarney e outros da alta classe de São Luiz. Ela é filha dessa raíz, é lá que ela se encontra, no bairro em que nasceu , São Pantaleão, estando perto das pessoas que fizeram parte da sua história, tomando sorvete de coco e guaraná Jesus. Nunca abandonou nada disso. Dizem, inclusive, que quando fica muito tempo afastada, liga chorando, com saudades.
Então, nada mais coerente que a posição dela como artista não destoe disso tudo. A Alcione que se pretende popular e que com muita propriedade se faz popular, é a Alcione que reverencia sua criação, sua terra e sua condição de menina pobre que teve oportunidade e fez valer esse voto. Seu compromisso como artista nos fala de alguém comprometida com a cultura deste país, em levar a boa música brasileira para esse povo.
Alcione passeia pelas mais diversas camadas da nossa música, gravando com os mais variados artistas, desde aqueles considerados a nata da mpb, até aqueles que, especula-se, tem suas imagens construídas pela mídia com um fim exclusivamente comercial. Aqui mesmo neste blog, já listamos mais de 90 duetos gravados pela Marrom, sendo grande parte deles resultado de convites para participação em discos de outros colegas.
Pois esta dita “promiscuidade musical” desperta a ira de muita gente que não concebe como uma grande cantora possa se render a um tipo de música fácil em detrimento da técnica, do primor melódico, da letra minuciosamente construída. Nós pensamos, entretanto, que esta forma de se posicionar em relação à forma de fazer música é o que faz de Alcione uma verdadeira embaixadora da cultura musical brasileira para brasileiro, e principalmente uma porta-voz e divulgadora do nosso samba de raiz (embora muita gente a critique por te-lo “esquecido” em detrimento de outros gêneros). Pois é desta forma que ela resgata e apresenta a essa nova geração o que, por exemplo, os fãs de Bethânia, Beth, Nana, etc., muitas vezes acusam-na de ter esquecido.
Alcione é estratégica. Se tem alguém que acha que um cantor do momento é tudo que tem de melhor, e Alcione chega daquele jeito, como quem não quer nada, participando do disco, acolhendo essenovo colega, de repente esse fã vai ter o prazer de ouvir um Candeia, um Cartola ou um Chico Buarque na voz de Alcione. Vejamos!
Na década de 90, Alcione resolveu homenagear os grupos de pagodes que estavam fazendo muito sucesso. Gravou o disco Valeu, em 1997, “Uma homenagem à nova geração do samba”. Suas composições e melodias se afastavam muito do samba de raiz. Alcione decidiu conferir essa "nova onda", gostou, pois é um jeito de falar de amor diferente, mais atual e agradava muita gente. Em compensação, grupos como Ara Ketu, Terra Samba, Exaltasamba e SPC se aproximaram mais da obra da Marrom, aproximando-se assim mais da MPB. Basta conferir que gravaram inclusive Dorival Caymmi com Alcione e sambas como “Não deixe o samba morrer” e “Ara-Kêto”, lindos por sinal.
Alcione e Belo, em uma apresentação na quadra da Mangueira.
Na década de 2000, muita gente a criticou por ter se aproximado de cantores como Belo, Alexandre Pires (e outros), e ter gravado mais baladas ainda (porque, na verdade, Alcione, a partir de 1983, quando estreou com “Qualquer dia desses” nunca mais deixou de gravá-las). Mas vejam que maravilha:
No “Ao Vivo”, de 2002, ela gravou um sucesso de Alexandre Pires, “Depois do prazer”, e muita gente comprou o cd porque achava que as músicas de Alexandre Pires eram a melhor coisa que havia. Conheceram através deste disco Jorge Ben Jor, Fátima Guedes, Jorge Aragão, José Augusto e a Mangueira, voltando ao samba de raiz (samba-enredo).
No “Ao vivo 2”, de 2003, muita gente nova já começava a gostar dela. E estorou o hit “Você me vira a cabeça”, já gravado por Alcione em 2001 no disco “A paixão tem memória”. Quem comprou o disco conheceu um tambor de criola pra lá de regional, conheceu Lupicínio Rodrigues, Maria Bethânia, Benito di Paula, Candeia, Noca da Portela, Cartola e Jamelão como cantor, além de interprete de samba-enredo (voltando de novo ao samba de raiz).
Em Faz Uma Loucura Por Mim, o disco que dá mais preferência às baladas, ela nos apresenta Dona Yvone Lara, Nilton Barros e Serginho Meriti. Na gravação do dvd ao vivo se mostra muito estratégica. Regravou sozinha uma música que gravou com Belo e os fãs deste cantor que quiseram conferir como ficava essa música apenas na voz da Marrom conheceram Emílio Santiago, Chico Buarque e Elis Regina, além dos carnavais maranhenses e de clubes carnavalescos do Rio...voltando sempre ao samba.
Alcione divide a faixa "Trocando em miúdos", de Chico Buarque, com Emílio Santiago, no dvd "Faz uma loucura por mim", de 2004.
O disco “Uma nova paixão” estourou com “Meu ébano”, samba popular que tocou em novela. Gravou Gustavo Lins, então novo talento dos pagodes românticos mais voltado para os jovens. Quem foi prestigiar conheceu, além do clássico “Sentimental demais”, sambas de terreiro (“Corpo fechado” e “Xequeré”), homenagem linda a Jamelão em “Pedra 90” (e entendeu a importância desse cantor para a Mangueira), além de querer saber quem são Djavan, Ivan Lins, Bituca, João Gilberto.
Quando grava o dvd ao vivo dá uma aula de estratégia e samba: convida o rapper Marcelo D2, que certamente trouxe seus fãs (ainda colocou os rappers angolanos) e conheceram Zeca Pagodinho, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Clara Nunes, Cartola e, por fotos, ainda muitos sambistas como Martinho da Vila, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro e tantos outros.
No “De tudo que eu gosto” lança o hit “Perdeu, perdeu” (gíria já malandreada no Rio), convida o rapper Falcão e a turma acaba conhecendo: Gilberto Gil, um pouco da história de Zumbi, Homero Ferreira e Mart’nália ( a nova geração de samba para provar que o samba não morreu).
Pois, então, nos resta uma pergunta: De que adianta uma cantora gravar boa música se não a apresenta à ninguém? Ou a apresentar apenas a um reduto já cativo?
Alcione tem esse poder, ela sabe o que faz e sabe o que quer. Qualquer disco dela tem lá os populares, e nem por isso menos talentosos, Chico Roque, Sérgio Caetano, José Augusto, Paulinho Rezende, Carlos Colla, enfim ...mas logo em seguida ela vem com Rosa Passos, Aldir Blanc, Candeia, Wilson Moreira, Gilberto Gil, Arlindo Cruz, Cartola, Altay Veloso, Sérgio Santos, Telma Tavares, Fátima Guedes, Paulo César Pinheiro, Nei Lopes e por aí vai... Como se as canções de apelo mais popular servissem de "chamariz" para elevar o nível musical desse povo que a ouve. Graças a Deus, na maioria das vezes consegue.
Revista Fatos e Fotos, 1978
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